Previdência Complementar: É preciso tratar desigualmente os desiguais

Previdência Complementar - É preciso tratar desigualmente os desiguais – por Adacir Reis

No momento em que o Governo Federal cria um Grupo de Trabalho para discutir uma agenda construtiva para a previdência complementar, há que se destacar uma evidência: existem diversas realidades dentro do regime de previdência complementar operado por entidades fechadas de previdência complementar.

Há entidades previdenciárias cujos planos são patrocinados por empresas estatais e pelos entes públicos.

Há entidades cujos planos são patrocinados por empresas privadas.

Existem ainda as entidades de previdência complementar cujos planos de benefícios são de benefício definido (BD), contribuição definida (CD) e contribuição variável (CV).

Há EFPC de grande, médio e pequeno portes.

Como nos ensinou o advogado Rui Barbosa, por ocasião do famoso discurso como paraninfo de uma turma da Faculdade de Direito do Largo São Francisco (Oração aos Moços):

A verdadeira regra da igualdade está em tratar desigualmente os desiguais, na medida em que se desigualam”.

Em relação ao porte das entidades de previdência o regulador já admitiu sua distinção e, por consequência, sua classificação como “entidades sistemicamente importantes” (ESI). É um bom começo de conversa.

No que diz respeito ao perfil do patrocinador, se público ou privado, há o reconhecimento na própria Constituição Federal sobre a necessidade de uma regulação específica para o patrocínio estatal.

Com efeito, o artigo 202 da Constituição, parágrafo 4º, prevê uma lei específica que trate da “relação” entre as entidades fechadas de previdência complementar e os patrocinadores estatais e públicos. Literalmente:

Lei complementar disciplinará a relação entre a União, Estados, Distrito Federal ou Municípios, inclusive suas autarquias, fundações, sociedades de economia mista e empresas controladas direta ou indiretamente, enquanto patrocinadores de planos de benefícios previdenciários, e as entidades de previdência complementar”. (grifamos)

Essa lei é a Lei Complementar 108/2001, que estabelece regras especiais em matéria de governança e paridade contributiva, as quais se sobrepõem às regras gerais da Lei Complementar 109/2001.

No entanto, como vimos, a Constituição Federal, no citado parágrafo 4º do art. 202, prevê normatização especial que trate da “relação”, num sentido amplo, entre as EFPCs e seus respectivos patrocinadores estatais. Portanto, ainda que o próprio texto constitucional indique alguns temas nos parágrafos seguintes, é possível normatizar outros pontos, já que houve, expressamente, o reconhecimento de normas especiais para tratar dessa “relação”.

Sendo assim, o Conselho Nacional de Previdência Complementar (CNPC), que é o órgão regulador do sistema e que recebeu delegação expressa do Poder Legislativo para editar normas e regular o setor (Lei Complementar 109/2001, art. 5º; Lei 12.154/2009 (art. 13), tem competência, com matriz não só legal, mas também constitucional, para promover regramentos diferenciados entre entidades com patrocínio estatal e patrocínio privado.

O CNPC tem também legitimidade, pois é integrado pelos diversos atores que compõem o regime de previdência complementar.

Aliás, é preciso registrar que o Poder Judiciário, em especial o Superior Tribunal de Justiça (STJ), em diversas ocasiões, reconheceu o poder regulatório e a autoridade do CNPC.

Um dos temas que poderia passar por uma regulação diferenciada do CNPC é a retirada de patrocínio.

Só aceita casar aquele que pode descasar. Assim, o fenômeno da retirada de patrocínio tem previsão nas regras gerais da Lei Complementar 109/2001 (art. 33, III).

A retirada, sendo um fenômeno que põe fim à relação contratual inaugurada com o convênio de adesão, não pode ser banalizada, daí a necessidade inafastável da prévia anuência do órgão de supervisão – PREVIC. Direitos e obrigações devem ser honrados.

No entanto, a regulação pode ser diferenciada. O patrocinador estatal ou público é reconhecidamente diferente do patrocinador privado. Por se pautar pelos princípios que regem a Administração Pública, como os da legalidade, da publicidade e da impessoalidade, o patrocinador estatal é diferente de uma empresa privada.

Além disso, a empresa estatal ou o ente público que patrocina plano de previdência complementar não vai falir. Há ainda que se reconhecer que os empregados das empresas estatais, ou servidores de entes públicos patrocinadores de planos de previdência complementar, que são associados de tais planos previdenciários, gozam de regime trabalhista e disciplinar diferenciados.

É exatamente por reconhecer tais diferenças que o Poder Legislativo previu, a partir do comando constitucional citado (CF, art. 202, par. 4º), um regime diferenciado de governança das EFPCs em razão do perfil de seu patrocinador estatal. E, reconhecendo suas próprias limitações, esse mesmo Legislativo delegou ao CNPC poderes para normatizar e regular o setor em toda a sua complexidade e diversidade.

No que se refere à fiscalização, por exemplo, após reafirmar expressamente a competência da PREVIC (LC 108/2001, art. 24), o legislador reconheceu diferenças em razão do perfil do patrocinador e, por consequência, outorgou ao patrocinador estatal uma obrigação distinta, atribuindo-lhe “a responsabilidade pela supervisão e fiscalização sistemática das atividades das suas respectivas entidades de previdência complementar” (LC 108/2001, art. 25, caput). E, também em caráter de distinção, a lei especial foi além e exigiu que “os resultados da fiscalização e do controle exercidos pelos patrocinadores serão encaminhados à PREVIC” (LC 108/2001, art. 25, parágrafo único).

É por esse aparato constitucional e legal, diga-se de passagem, que o Tribunal de Contas da União (TCU) deve exercer sua competência de fiscalização sobre os patrocinadores estatais, e sobre a PREVIC, não sobre as EFPCs. Não se trata de reduzir a fiscalização, mas integrá-la num todo consistente e fortalecê-la.

Outro corte fundamental que deveria ser feito pelo regulador, combinado com o perfil estatal ou privado do patrocinador, é o da modalidade do plano previdenciário. Uma coisa é o plano BD, outra coisa bem diferente, e mais simples, é o CD. No BD há um componente atuarial, no outro não. No BD, o risco é compartilhado entre patrocinador, de um lado, e participantes e assistidos, de outro. No CD, o risco é dos participantes e assistidos.

Em geral, os planos BD estão fechados para novas adesões. Portanto, são planos em extinção, razão pela qual já mereceriam um tratamento diverso dos planos CD, que em geral estão ativos e abertos para novos ingressos de participantes.

O CNPC poderia ir além da simples regulação das diferenças de estruturação dos diversos planos previdenciários. A preponderância na gestão de um tipo de plano ou outro, no interior de uma EFPC, também deve repercutir na regulação da governança dessa mesma EFPC.

A partir do oportuno e qualificado GT criado por um Decreto do Presidente da República (Decreto 11.543/2023), o CNPC poderia quebrar alguns paradigmas e, efetivamente, tratar desigualmente as EFPCs que são desiguais, na proporção em que se desigualam. Essa proporção de desigualdade pode, de largada, ser aferida em razão do perfil do patrocinador (se público ou privado) e da modalidade dos planos previdenciários que elas administram (BD ou CD).

Na tumultuada tradição jurídico-brasileira, fala-se que é difícil prever o passado. Então, mais aconselhável é tentar prever o futuro, seja para dar a justa efetividade aos direitos e às obrigações, seja para propiciar o fomento da previdência complementar.

*Adacir Reis é advogado, Sócio do escritório Adacir Reis Advocacia (Brasília) e autor do livro Curso Básico de Previdência Complementar (Editora Revista dos Tribunais). Foi Secretário de Previdência Complementar (2003-2006).

Artigo publicado originalmente no site ABRAPP.